Ilustração Geisa Buzelin
 

 

Para destruir

Caetano Tavares de Almeida Gontijo

Nasceu em Belo Horizonte. Desde menino observa as galinhas de angola que cria em seu jardim. Participou de diversos saraus, recitais, teatros e comunidades artísticas nas cidades de Itabirito, São Romão, São Francisco, Divinópolis (onde foi agredido com um chute e um soco no nariz, no meio de uma ponte, à noite, o que lhe rendeu, na conjugação de seu rosto, sua maneira torta de olhar), Pirapora e Januária. Integrou grupos nos quais não se integrava e por isso hoje vive só - com a letra; não se posicionou definitivamente sobre a questão da carne vermelha e do frango gripado. Aluga pequenos quartos no centro de BH e procura pessoa para amar. Toda manhã se esquece da seguinte frase de F. Nietzche, que leu na Venezuela: "o homem prefere o nada do que não querer nada". Atualmente cursa Letras na UFMG, o que quer também dizer um desencontro, ou foz de rio, ou coleção de espirros de poeira, ou ainda, pela desconfiança, um futuro de sucesso garantido, aquele que nunca se conhece.



"eu não sei, tem vez, parece, que você fala para destruir o que há na voz"


você fala para destruir o que há na voz, ou, de outro, você fala o que, desde antes, já estava destruído, dando-o de vez, ou outro você destrói, ao falar, o que seria o amor da voz, este futuro sempre tardio. que me diz? eu não sei, parece, parece que a pressa de vir foi tanta e foi a mesma que fez escorrer da mão o copo, a água, e não a sede, que eu me esqueci de limpar os cacos, foi tanta para vir te ver de vez, mas você fala dum jeito que não vai limpar meu sangue; para destruir o quê na vez, ou outro, veja, você tem vidro nos olhos. por quê me disse que não havia sentido no canto que fiz pros nossos anos? você nem fala mais, por quê pôs os sentidos fora do corpo enquanto cantava e passava a seu lado? não viu que o terrível dos olhos não chegou a invadir o espelho da retina e que você estava lá, ainda, reflexo, sorrindo sobre o contentamento? e achei que era a troca súbita de melodia, a curva nova que entendi, o que te embasbacava a expressão, mas não, desde aquele tempo havia vidro debaixo dos seus, dos meus pés. você fala como se não fosse limpar-me o sangue. "eu sou um lugar". o desafio era falar da parte que eu não agüento, mas de um modo que não estabelecesse a sua mudez, não sei, parece, tem vez que a destruição na garganta, você não quer saber dela. por que temos tantas histórias? uma que você me contou um dia e depois se esqueceu eu nunca esqueci, diz: eulugar era um pássaro sem penas que vivia delirando a sua falta de gaiola; no final você decide se é verdade ou se é ridículo; o frio rasava sua pele e ele chorava alto, mas com tanta alegria que dava pena, e a gente se ouvia através dos seus soluços, que eram arrepios; e o que é isso agora de contar vantagem? pra quê tanta vantagem? você fala como se fosse descobrir o que há na voz, tenho horríveis medos de distância sob a pele. como se fosse é um delírio, minha garganta está tão seca, me traz um pouco d'água? o que tenho não lhe basta, desde que crescemos um para o outro. será que faltou o corpo? ou foi o pensamento? o inverso? só um pouco, por favor. você quer cortar sua garganta, é isso? quer descobrir que veio do vidro o sangue da voz? então me diz, eu te digo: a distância é uma coisa que sempre esteve entre nós dois, às vezes você a chama, em direção a mim, loucura, às vezes eu a chamo incêndio em sua direção, e sempre muda o esquecimento que atraímos pelo caminho. eulugar era um pássaro de frio, e não existe mais. suas penas, por ele as ter perdido, estão sempre aí. hoje eu vi. foi na pressa de chegar até aqui, difícil distinguir, um corpo rolava, quebrava-se, multiplicavam-se ao seu redor a água, dentro de si a sede, mas ele gritava sem medo o delírio de estar deslizando nas penas, manchando o chão de penas vermelhas, não vi quem era e não estava escuro, e alguém não podia, pois não há ninguém aqui entre nós dois, perguntei quem é, não me respondeu mas sorriu largo, comecei a achar estranho, pois me era familiar o desespero embaixo de seus olhos, seu jeito de se misturar na superfície da alegria com a qual me olhava antes de morrer. sempre as mesmas palavras, as mesmas histórias, anda, você fala como se não fosse me trazer de volta, como se fosse possível. chamo de incêndio, sim, mas no vento é onde queima, porque uma voz pode ou não se suportar, ao mesmo tempo, ou separada de si. ou outro: a distância é um lugar onde moramos, até chegar o tempo de um outro. às vezes te chamo de amor, às vezes, um sumiço na língua, você me chama.

"como se fosse destruir o que há na voz, nunca sei, nunca fiz tanto silêncio, mas você me fala."